terça-feira, 31 de maio de 2011

LUZIsabel Bande Espinosa

Versos de Viver

Prefácio

“É preciso a angústia de ser um caos para gerar uma estrela”.  (Nietzsche)

Hoje, manhã de uma quinta-feira do mês de maio de 2007,  encontro-me diante de uma folha de papel em branco, onde devo escrever o prefácio deste livro que ora vos apresento. É uma tarefa que reputo ao mesmo tempo honrosa e desafiadora.  Digo que é uma tarefa honrosa porque, afinal, é um privilégio ser escolhido pela autora para fazer a apresentação desta que é sua obra mais expressiva, onde ela fala da existência e de seus desafios de uma forma poética e, às vezes trágica.  Tal como Schopenhauer, nossa autora também percebeu que “a vida é dor” e que “o mundo é vontade e representação”. O desafio reside justamente no fato de saber o quanto estamos sendo fiéis no que estamos dizendo em relação àquilo que a autora realmente disse.
 E mais, é preciso não delongar muito, senão, corre-se o risco de o prefácio ficar proporcionalmente mais longo do que o texto do livro.  Mas como ser sucinto, breve, com algo tão profundo?
Ao ler os originais fiquei com a sensação de que não seria capaz de captar, menos ainda de transmitir, a representação de mundo que está por trás de cada verso que compõe o universo poético-existencial da nossa autora. É um livro onde o mais importante não é aquilo que se lê nas linhas, mas o que está nas entrelinhas. Por isso sua leitura deverá afetar de forma diferente os diferentes leitores. Cada um fará sua própria representação a partir do que for capaz de captar do que está implícito nas entrelinhas e nos hiatos entre uma palavra e outra.
A autora faz dos seus textos um pré-texto para falar da vida e da existência nessa vida. À medida que lemos suas palavras, vamos iluminando o lado escuro da nossa mente e começamos a enxergar o que estava apenas subjacente. O mundo que vemos e vivemos, às vezes, não passa de mera aparência. Buscar a essência é o grande desafio da existência. É essa a trajetória poética da nossa autora, que faz da meta-linguagem a linguagem para entender o mundo e a vida. “Escrever poesia é deixar que a Palavra seja ouvida por trás das palavras” , dizia Gerhart Hauptmann. Portanto, mais do que ler este livro, é preciso estar atento para ouvir o sussurro metafísico da alma da autora por trás de cada palavra. É na escuridão dos espaços em branco que se podem  captar a essência e o espírito dessa escritora que não se furtou em deixar falar a própria alma. Só a alma sabe falar das essências, enquanto o corpo fala das aparências. Assim, cada palavra escrita é o suspiro de uma alma que experimenta o deleite de ser ela mesma. Este, portanto, é um livro escrito de alma para alma, de mente para mente. Sua leitura mexe com o que está dentro de nós, pedindo passagem pelo corpo. Afinal, quando a alma fala, todo o corpo treme e treme.
Escrito numa linguagem poético-filosófica existencial, este livro nos convida a ir ao encontro da nossa essência, para deixar falar a alma. Nessa trajetória de ir ao encontro de nós mesmos, vamos nos deparar e confrontar com nossas dúvidas, nossas incertezas e nossas angústias, que podem aumentar ou diminuir o sentido da vida e o significado da existência.
Nascemos e vivemos em um mundo onde o melhor parece estar sempre escondido. Um mundo que esconde outros mundos. Nossa autora parece que sempre desconfiou disso e passou a procurar formas de acessar esses outros mundos escondidos. Escrever em forma de poesia foi a forma encontrada por ela para abrir as portas desses outros mundos que deram acesso a outras vidas, mais cheias de sentido, e a existências repletas de significados.
As palavras são mágicas. Com elas podemos criar o mundo que queremos. Em suma, as palavras abrem as portas do mundo da aventura, da imaginação e dão vazão para nossa intuição se expressar.
Versos de Viver é o resultado do diálogo existencial que a autora travou consigo mesma. É o resultado da luta entre o ser e o não-ser da autora em busca de um querer-ser ou devir. Neste diálogo entre ser e não-ser, deuses e demônios se defrontam numa luta interna pelas entranhas mais recônditas da alma em busca de si mesma. Pode-se dizer, então, que este é um livro catártico. Ele purifica, resgata e ajuda a restabelecer a relação do ser-no-mundo com o mundo. O que a experiência da autora parece nos dizer é que às vezes é preciso ir ao fundo do poço para encontrar as forças necessárias para sair dele. Só quando tocamos o fundo, conseguimos o impulso necessário para emergir. É preciso ter a força da Fênix para poder ressurgir das próprias cinzas.Enfim, é preciso saber morrer para aprender a viver. Afinal, só sabemos o comprimento da linha depois de termos desenrolado todo o novelo. E a vida é como um grande novelo de linha que vai se desenrolando ao longo da nossa existência, revelando seus pontos fracos e suas potencialidades. Quando encontramos uma fraqueza, é preciso, portanto, não desanimar, pois o que pode parecer fim é na verdade o começo para um re-começo. Assim parece ser a vida, um eterno recomeçar. Quem assim a compreende, nunca desanima, tal como Sísifo. Ás vezes temos que pagar um preço para viver com sabedoria; a liberdade nunca é de graça, é preciso conquistá-la. E tal empreendimento nem sempre se dá em terra firme, sob o espelho sereno do céu, mas em águas tempestuosas, sob um céu de relâmpagos e trovões.
Nascemos no mundo para o mundo. O mundo é o palco onde o ser procura ser. Às vezes nos sentimos distantes do mundo e quanto mais nos aproximamos deste, mais nos distanciamos de nós mesmos. Como, então, nos aproximarmos do mundo sem nos perdermos? A autora deste livro fez esta aproximação através da poesia.
Através do diálogo poético, nossa escritora foi aos poucos diminuindo as distâncias que separam o ser humano do mundo. Distâncias que são medidas com desespero, angústias e que promovem um mal- estar existencial e um desencantamento do mundo. Sentimo-nos estranhos no ninho. Esse estranhamento recíproco entre o ser e o mundo pode levar ao desespero existencial. A leitura deste livro nos coloca diante desta realidade conflituosa entre nós e o mundo e nos impele a encontrar nossas próprias saídas. Não é, portanto, um livro de receitas e sim um livro de prospecção, onde cada um, à medida que vai lendo, vai mergulhando cada vez mais profundo dentro de si mesmo para descobrir suas riquezas. Cada um de nós esconde uma jazida de preciosidades inexploradas. Descobrir essas riquezas é encontrar o elo que nos liga ao mundo e nos restabelece a vontade de viver. Ninguém para salvar-nos, nenhum recurso exterior que nos possa trazer a liberdade; a liberdade não pode vir senão do fundo de nós mesmos, do esforço de nossa vontade. Pensamento, vontade-de-ser e liberdade são palavras que clareiam o ser humano, que visualizam o halo que cinge sua fronte desde o nascimento. Somos uma porta aberta por onde o mundo passa e a vida se escoa. Somos o começo e o fim de nós mesmos. Fechar  a porta é deixar-se inundar pelo mundo e afogar-se na existência. Abrir-se para o mundo é um exercício de liberdade e uma postura de possibilidade.
Com este livro, portanto, a autora nos devolve ao mundo tal como ele é, nos põe frente a frente com a vida e suas nuanças e nos convida a uma reflexão sobre nós mesmos. Os caminhos existenciais percorridos por nossa autora são os caminhos de todos aqueles que, como ela, estão ou estiveram à procura de si mesmos e do mundo. É a jornada do herói, tal como descreve a mitologia grega. É uma busca de si mesmo, da própria identidade, daquilo que nos faz ser-no-mundo. Este livro nos leva a um re-encontro com nós mesmos.
Podemos dizer que cada poema deste livro representa um fragmento de vida em busca do todo. Não é um livre triste: a autora consegue falar das coisas tristes sem tristeza, com a alegria de quem encontrou o fio da meada e compreendeu que cada feiúra esconde algo de belo em si. Este é um livro alegre porque fala de como encontrar vida por trás da vida, isto é, encontrar a essência por detrás da aparência. Assim, as pessoas que o lerem, encontrarão aqui estímulo para continuar vivendo, ainda que isso pareça não valer a pena. Afinal, o que parece ser, nem sempre é.
Enfim, a leitura destas páginas nos leva a uma viagem onírica pelas entranhas do não-ser que habita o ser de todos nós. É um livro de encontro da alma com o corpo, da essência com a matéria, do eu consigo mesmo. Nestas linhas e entrelinhas encontramos a expressão de uma alma para outras almas, que, como ela, procuram encontrar sua matéria sensível, libertando-se assim das abstrações e medos teóricos.  A poesia nos permite uma participação alegre nas tristezas do mundo. Acho que esta é a grande descoberta que a autora quer dividir com seus leitores. Transformar o viver em versos pode tornar a existência mais suportável e a vida uma grande poesia. Versos de Viver são fragmentos de uma vida inteira, que se faz e desfaz num processo constante de construção-desconstrução-reconstrução de si mesma.
O mundo da autora é um mundo em des-construção  de si mesmo. É um mundo desfeito, que se refaz nas próprias ruínas. Ela junta os pedaços e constrói um mosaico de vida, onde cada pedaço traz em si uma parte do todo. Mais do que ninguém, nossa autora compreende que nós somos nosso próprio artífice, isto é, que cada um faz a si mesmo a partir do que é. Este mundo que está aí, é um mundo de segunda mão, feito pelos e para os outros. Por isso ele nos parece hostil, estranho. O mundo que queremos ainda precisa ser construído. Esse é o desafio existencial por excelência a que todos estamos sujeitos. Enfrentá-lo é uma questão crucial para que a vida comece a fazer sentido. Viver pode ser uma grande brincadeira entre ser e não-ser, para deixar vir-a-ser.
Quase todos os livros nos levam a um mundo desconhecido, a uma aventura de descobertas e de encontros inusitados. Este aqui, não. Ele nos leva a um mundo escondido por trás dos preconceitos, dos dogmas, das discriminações. Um mundo que está nas entrelinhas da vida. Por isso sua leitura é tão envolvente. A vida é uma procura constante de vida. Viver é como brincar de esconde-esconde, onde o que encontramos logo se perde em nome de outra busca. O homem é um ser de busca, de encontro e desencontro.
Existem autores que escrevem seus livros olhando o mundo de fora para dentro, permanecendo sempre à margem do que escrevem. Outros, no entanto, escrevem olhando de dentro para fora, mergulhando dentro das palavras, para tirar delas sua expressão mais autêntica.  Este é o caso da nossa autora. Seu trabalho é o resultado de um mergulho nas profundezas do lago da sua própria existência. Em cada palavra escrita, em cada estrofe, encontramos o suspiro de uma alma que experimenta a ambigüidade e os paradoxos de ser ela mesma. Afinal, como disse o poeta Caetano Veloso, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
Sem querer nos ensinar nada – visto que as experiências existenciais, além de serem intransferíveis, são também incomunicáveis – a autora nos ensina, no entanto, que é necessário e possível transgredir o que está estabelecido; que vale a pena desobedecer e que a construção do que somos e queremos ser é um processo ousado que requer, num primeiro momento, um abandono do ser que se é, para deixar surgir o ser que queremos ser.
Preparem-se para viajar nas páginas de uma vida em Versos de Viver. Boa leitura!




Mário Luiz “Pardal” – Filósofo e Professor
São Thomé das Letras, maio de 2007

VERSOS DE VIVER
LUZ


Quando eu era
Menininha,
Me disseram,
Com palavras, com o corpo
E com o olhar,
Que dentro da gente
Era tudo escuro.
E que ninguém sabia
Onde é que tanto monstro
Se escondia.
E eu era um tiquinho...
E que tinha que se segurar bem firme,
Ficar assim, bem durinha,
Bem fechada,
Inventar uma fachada,
Pra não deixar sair nada.
E eu, que nem força tinha...
Mas fazia.


Ainda bem que existia
(Ninguém nem falava muito)
Aquela imensa
Alegria!
Com ela, ninguém podia.


Vinha no vento,
Em velório, em casamento,
No meio das páginas dos livros,
Em olhares, pulos, sustos,
Escondida nos riscos coloridos
Das bengalinhas de açúcar
Da venda.
Era olhar e encontrar
Em tudo quanto era
Lugar.


Foi nos livros,
Sempre tão meus companheiros,
Que fui procurando pistas.
Nos livros e na alegria,
Que era amarelinha,
Brilhante
E, juraria,
Saía,
Não lá de trás ou da frente,
Da esquerda ou da direita,
De cima ou de baixo,
Mas bem de dentro
Da gente.
Vivia desconfiada
(Durinha, é verdade.
Vai que... )
Que aquilo,
De monstros e de escuro,
Ah, era conversa fiada.
Um dia, afinal,
Achei
A filosofia oriental.
Que legal!


Foi um alívio,
Alívio puro.
Era mesmo uma balela
Tudo aquilo sobre escuro.
Os monstros, então,
Pura ilusão!


É, mas ser ocidental
Não são só palavras.
E, além disso,
Quem disse
Que palavras
São só palavras?
Pois é
A luz do Oriente,
Para a mente ocidental,
Não era suficiente.


Mas aí,
Descobri
Que as plantinhas
Sabem colher raios de sol
E são tão incríveis,
Que fazem o que um químico,
Com três mil graus de calor,
Só faz um pouco:
Quebram moléculas de água
Coisa de louco!
Com o sol, a água e o ar
Fazem glicose,
Coisa de gênio,
E oxigênio!


E foi lindo ir descobrindo,
Ligando estrelas,
(Temos estrelas!)
Nossas células têm
Mitocôndrias,
Que fazem produzir
Energia.
Reinventar o sol!
Quem diria!
E se dividem em duas, em quatro e por aí.
Pura magia!
O sol pega carona nas plantinhas
E viaja até nossas células!
Cada célula!
Aí é só inverter,
Para o sol
Aparecer.
Era água, sol e ar.
Virou glicose e O².
Volta a ser igual depois.
Que delicia descobrir
Que, para a seiva fluir,
Nosso ser tem que se abrir!
O que prova, com certeza:
Foi uma grande bobagem
Brigar com a natureza.
E que foi engano puro
Dizer
Que dentro da gente
Era escuro.
E tem mais:
O Universo
Há 19 bilhões e 700 milhões de anos
Quando nasceu*
Parecia escuro.
Parecia!
Ah! Eu sabia!
Nele também existia
Aquela imensa alegria!
Aquela luz
Escondida nas partículas apertadinhas
Da matéria.
Que nem em mim!
Até que enfim!
Aí foi se soltando...
Espreguiçando...
Olha só, que amor!
A ciência descobrindo
A Luz Interior!


“Demorou milhares de anos para brilhar.
Pessoa

Eu não sabia,
Mas minha ambição
Sempre foi
Ser uma pessoa.
E, aproveitando a trilha,
As mulheres
Gritaram em mim,
As mães gritaram
Em mim.
E gritam.
Quis criar um filho,
Não como vira
Ou sentira,
Mas como pessoa.
Quis ser pessoa
Para os homens
Que me amaram
E que amei.
Eles, porém, não me queriam assim,
Não entendiam.
Só entendiam mãe, esposa, namorada, amante, amiga...
Uma excluindo
A outra.
Impossível
Coexistência
Pacífica.
Nem eu entendia
Que era ser
Pessoa
O que eu queria.




Passo de Dança


Amigo,
Eu te peço:
Não te apresses.
Não me fales de impossibilidades.
Elas brotam da fonte
Do não querer.
E não têm outra utilidade,
A não ser
Fechar portas,
Janelas,
Caminhos de sol.


Não te enganes.
As palavras,
As idéias,
Servem outros amos
E te distraem,
Deixando-te fazer jogos,
Diferentes configurações
Para propósitos,
Sempre os mesmos,
De antemão estabelecidos.

Procura, se quiseres,
Mais no fundo de ti
E, então, se isso for,
Vai com cuidado.
Pede licença a cada passo.
Pisa com delicadeza.
Pára, solícito e atento,
Muito atento,
A cada sinal,
A cada sutil sinal,
E guarda-te
De cometeres o erro fatal
Da interferência.


Sente, apenas,
E deixa que teu ser inspire
O próximo movimento.
Que te guie,
Por caminhos de surpresa,
Até, talvez,
(Quem sabe?)
Antes de ti.
A vida é tão antiga...

Mas, se queres,
Por enquanto,
Enquanto me queres,
Eu te peço:
Arrisca comigo um movimento novo,


Acompanha-me neste passo de dança,
Mesmo que por momentos eternos,
Ternos.
E fala-me de possibilidades,
Como o fazem as crianças,
Quando brincam
E sonham.




Fique Chateado Comigo

Ah, fique chateado
Comigo.
Ligue, sim, para essas
Bobagens.
Seja infantil,
Seja tolo.
Fique chateado
Comigo.
Fique.
Fique com você,
Do seu lado.
Fique com a criança.
Olhe
A alegria fazendo seus passos,
O abraço pronto,
O sorriso,
Desmanchando-se em marcha à ré
Diante de meu não poder fluir
Neste momento.
Fique, sim,
Chateado comigo.
Fique com a criança
Ancestral.
Dê-lhe a mão.
É outro caminho, agora,
Inesperado.
Ouça suas queixas,
Abrace-a ternamente
Junto ao coração.
Pode estar se sentindo abandonada.
Pode estar se lembrando,
Sem saber que é isso,
Que podia ser fatal
Para a vida,
A desconsideração,
Possível privação,
Da nutrição:
Comida, abrigo, sexo
Possibilidade
De continuidade.
Pode estar se lembrando
Do que ensinou a vida:
De que é preciso estar alerta,
A qualquer sutil sinal,
Tecer as estratégias
E lutar.
Não a enfraqueça.
Diga a seu sentir,
Suavemente,
Que não precisa ficar
Nesse querer sair
E ter que entrar,
Fibras que se esgarçam
Na urgência de esconder-se
E inverter
O curso das águas.
Deixe.
Deixe fluir o fio
Dos ressentimentos.
Todos, todos, todos...
Se não agora,
Virão,
Numa ou noutra hora,
No desespero de reconquistar espaços.
Virão.
Virão escondidos de si mesmos,
De nós,
A cada descuido,
Em explosões ou sarcasmos,
Que não entenderemos.
Ou pior:
Meses, anos de castigos,
Até o dia ---- se vier
Em que a criança se sinta
Além do perigo.
Ah, por favor, amigo,
Fique chateado
 Comigo.
Fique com você,
Do seu lado
E diga tudo, pense tudo,
Tudo, tudo, tudo...
Acolha os sentimentos que vierem,
Brinque com eles,
Dê-lhes
Razão.
Temos tantos momentos plenos...
Depois das queixas,
Eles virão
Por associação.
Só assim o sol,
E então,
Da próxima vez
Em que um de nós não puder
Fluir,
Será mais leve,
Talvez, até engraçado, alegre
Dizer:
Por favor, querido,
Fique chateado
Comigo.

Bolhas de Sabão

Bolhas de sabão
Me levam,
Me lavam,
Me deixam voar.
Sentir
A carícia
Do ar.
Me multiplicam
Em brilhos,
Em cores,
Em pops.

Ah, eu vou diluir agora
Em água pura
Essa energia,
Essas lembranças,
Que já cumpriram suas funções,
Lições,
E querem se reciclar,
Viajar,
Como bolhas de sabão,
Em cores, brilhos, pops
No ar.



Ficar

O que é ficar?
Seria o passo
Para o compromisso,
A salvo
Das amarras?
Por fim a forma
De abreviar os caminhos,
Olhos nos olhos,
“Sim, é isso
Igualdade de condições
Será se for?”
O vôo
Acima
De cobranças e ressentimentos?
De por baixos e por cimas?
Sim, chorar porque dói,
Mas sem as velhas repetições,
Humilhações
Do abandono?
Ficar,
Tendo em conta
Que “a carne é fraca”,
Pura delícia,
E faz-se necessário
Portar a camisinha?
Ficar
Querendo
Dividir
A responsabilidade?
Somar
O amor
Por uma vida
(Sim, a barriga é sua,
o espermatozóide é meu
E nossas mães já viveram
Os seus papéis)?
Se ela,
A camisinha,
Rebentar
E houver o
Encontro
No mais íntimo
Da vida?
Ficar?
Sim,
Se
He e she
Rishi.


Nota: Rishi – sábio, em sânscrito.




Meu Sexo

Meu sexo
Era meu e do menininho
Os dois brincando
De cavalinho.


Aí eu descobri
Que as pessoas faziam sexo
E não era uma brincadeira.
As pessoas se maltratavam.
O desrespeito e o sexo
Se misturavam.
E que o sexo era diferente
Das coisas que existem
E se comentam.

Tudo era escuro
Dentro e fora das cobertas
Dentro e fora dos sentimentos
Dentro e fora das palavras,
Sussurradas essas,
Desinformações assustadas,
Olhares de quem aponta um atalho
E já finge que não mostrou.

E eu, toda aventura e sonho e medo,
Culpa e desejo,
Perdida e só,
Via a noite chegando
E pressentia
A noite fingindo sono
E o sexo despertando, vitorioso
Atrás de cada janela.



Um Sonho

O meu sexo
Tinha um sonho:
Sair da calada da noite,
Dos esconderijos das caras
Escondidas dos órgãos sexuais
E suspirar ao sol,
Cantar e gritar
E amar
Ao sol,
Como cantam e gritam
E amam
As crianças.

O meu sexo
Tinha um sonho:

Ver as crianças crescerem,
Vibrando na freqüência
Das ondas do amor-sexo,
Sexo-sol,
Tranquilas,
E poderem, enfim,
No seu mágico
Momento,
Cantar e suspirar e gritar e amar
Ao sol,
Como cantam e gritam e amam
As crianças.




Negócio da China

A culpa,
Tenho cá comigo,
Que quem a inventou
Não era sério
E não dava
Ponto sem nó.

Será que também não tinha
Dó?
Não saberia?
Onde é que essa tragédia
De poder sobre o outro
Levaria?
Se soubesse, que faria?
Será que resistiria
À extrema facilidade,
Manipular sem piedade?
Menina,
Culpa é negócio
Da China!

E quem caiu nesse conto?
Será que era só um tonto?
Como foi que aconteceu?
A raiva que era pro outro
Dirigiu ao que era seu?
Usou em si o castigo,
Deu o ouro pro inimigo?
Literalmente!
A história está aí
E não mente!
Culpa rendeu uma nota,
Digam-no as terras da Europa,
Que caíram nas mãos dos seguidores
Do tal.
Muitos seguidores!
Poucos se aproveitam disso.
Outros
Ficam só
Com as dores.


O Que É?

O que é? O que é?
Arma perfeita,
De gênio mais que gênio,
Mais incrível que a bomba atômica,
A bomba H,
A bomba de nêutrons,
As armas químicas,
As que não conheço,
E as que serão
Inventadas?
Veja, é a mais barata,
A mais exata,
Abrangente,
Cobre países inteiros!
Inteligente.
E já quase que nasce
( Ou nasce?)
Com a gente.
É inocular
Uma única vez,
E se despreocupar.
É preventiva!
Paralisa prováveis
Oponentes.
É irreversível!
Como não?
Não deixa possibilidade
De reconstrução!
É discreta
Lenta
(Pra que pressa?)
Deixa o alvo vinte e quatro horas por dia
Sob controle
Total.
A ferida,
Dilaceramento,
Extremamente lento,
De fibras, vísceras, células
Vai sendo aberta
Por toda a vida.
Como, energia pra outra coisa?
Refletir, agir, reagir?
Golpe de mestre!
E tão prática!
Nem precisa de carcereiros,
Celas, cercos,
Nada de aviões de guerra,
Navios, fortes,
Exércitos, provisões.
Nem mesmo pequenos gastos
Com manuais de instruções.
Cômoda!
Nada das chateações
Das locomoções,
Nem o perigo evidente
De ficar
Na linha de frente!
Tal perfídia,
Nem precisa, ao menos, veja,
Preocupar-se com a mídia.
Tirando-se um ou outro suicídio,
A coisa acontece
Com elegância.
Não deixa listas
Com nomes de idos
E feridos
Nem pistas. Nem precisa dar-se ao trabalho
De lavar as mãos.
O que acontece, afinal?
Quem colocou a arma
Na mão da vítima,
Fez com que a voltasse contra  si mesma
E apagasse a luz?
É perfeito:
Ela não hesita.
Fizeram-na acreditar
E acredita
Que está sendo monitorada
Pelos raios X de Deus.

Nossa Maravilha

Pecar,
Ter culpa,
Não é pra qualquer
Mortal.
Pecar,
Ter culpa, implica
Em liberdade
De indiferença.
Em todo o poder
De ser,
De conhecer,
De movimentar-se
Como pessoa-da-casa,
Por todos os labirintos,
Com lanternas de mil velas
E total apoio
Logístico.

Não, nós não temos
Culpa.
Quem somos nós,
Tão longe, ainda,
Da consciência
De nossa maravilha?
Temos, sim,
Orgulho vão.
Filho, é verdade,
Do anseio legítimo
De sermos
Amados.



Pecado II

Mas já que aqui estás,
O que fazer de ti,
Nesta natureza,
Onde nada se perde,
Nada se cria,
Tudo se transforma?
Reciclar-te?
Dar-te uma outra forma?
Olhar-te bem,
Cheirar-te,
Sentir-te com as mãos atentas,
Fibras atentas,
Sentir em ti
O que é igual,
Já que, como tudo,
Habitaste
O ovo primordial?

Posso chamar-te de erro?
Talvez, assim, fique mais certo.
Talvez fique mais perto.
Seria, então, processo,
Sem tanto desgaste
De energia,
Sem atoleiro, sem tragédia,
Culpa, castigo,
Transformar-te em ouro,
Ouro de alquimia.

Erro, em si, é coisa útil.
É propulsor do movimento
De aprender
A viver,
Do fluir, do evoluir.
Foi um erro,
Eu errei aqui,
Você errou ali,
Foi assim,
Assado,
Que bom
Aprender esta lição!
Ter mais um recurso,
Uma outra escolha.

Ter a oportunidade,
O poder,
De, daqui pra frente,
Já fazer
Diferente.


Carências

Deixe,
Não quero falar agora.
Elas virão,
Minhas carências,
Pedindo
(Sempre vêm...)

Agora
Quero brincar com minhas riquezas,
Meus brilhos,
Alegrias de quintal,
Lembranças claras, balas de goma,
Pequenas lindas flores,
Saltando do verde,
Colorindo os caminhos,
Porque sim.
Sem ninguém a cuidar delas
E belas!

Então, com as mãos cheias de delicadezas,
Poderei acolhê-las
Quando vierem
(sempre vêm...)
Deixar que se espalhem,
Transbordem em sal e água
E oferecer-lhes
Um carinho de sol.



Caminhos

Quando passamos por um caminho
E há pedras, poças d’ água,
Buracos,
Não brigamos com o caminho.
Olhamos,
Vemos os obstáculos,
Lidamos com eles,
Passamos.

Quando passamos pela vida das pessoas,
Não o fazemos como quem segue caminhos.
Queremos que sejam outras
E que as pedras não sejam pedras,
E que as poças não sejam poças,
Os buracos não sejam buracos.
E tropeçamos, escorregamos, caímos
E, ressentidos,
Culpamos as pessoas
Por não as amarmos.

Talvez por não nos olharmos por dentro
Como quem não olha as pessoas,
Como quem quer que os caminhos
Dentro de nós
Sejam outras geografias.
E tropeçarmos, escorregarmos, cairmos,
E nos culparmos
Por não nos amarmos.



Movimento

Quem sou?
Quem seria?
Como se faz em mim
O movimento?
Como se faria?
Se, em lugar de força e dor
Sobre o que não conheço,
O que ninguém conhece
Em mim,
Em nós,
Encontrasse o fio
Da delicadeza
E fosse passeando com ele
Por meus caminhos,
Atenta,
Sem pressa
Nenhuma?

Meditando

Alento
Lento
Tô.


Humildade

Disseram-me
Que devia
Ser humilde.
Não me disseram a quem devia,
Nem deixaram claro
O que era aquilo,
Na verdade:
Ter humildade.

Acreditei,
Como se acredita
Nos dogmas,
( Não sem revoltar-me, claro)
Mas eles
Estão instalados
Em antiquíssimos esconderijos,
Dentro de esconderijos,
A salvo
Da ciência
E até
Da adolescência.
Restava-me o ensaio,
Já que não havia
Claros caminhos.

Então,
Primeiro a dificuldade:
Qual é a exata fronteira
Entre humilhação
E humildade?
E os jeitos de corpo...
As frases, cheias de obscuros
Mais e menos, pior e melhor entre parênteses.         

A quem serviriam
Tantos desconfortos?
Foi aí que me veio
Que mais fácil,
Confortável e feliz,
Era perceber nossa beleza,
A beleza em cada ser.
E que humildade era isso:
Era saber-se tão maravilhoso
Como todos os maravilhosos seres
Da natureza.



Poder

Eu posso, tu podes, ele pode,
Nós podemos, vós podeis, eles podem.
Mas, se todos podem
Poder,
O que é poder?

Ah, isso é que é poder:
Cada um poder
Desenvolver
Seu ser!
Eu posso dizer e digo:
Poder
Não é verbo
Defectivo.

Então, quem se deu
O poder
De mexer no poder?
Em tempos, pessoas, modos?
Medos?


Você deveria?

Os deverias,
Se bem examinados,
Do começo ao fim,
Do fim ao começo,
Se virados do avesso,
Teriam sustentação?

Pra que serviria
O deveria?
Para dar-nos o se?
Você deveria e se assim fosse ...
Mas isso não é estrutura
De historinha
Da carochinha?
E, que pena,
Em geral um tanto
Destituída de encanto?

O deveria,
Já veio, outrora,
Nos puxando para longe
Do aqui e do agora?
Então pra onde e quando e como ir,
Se não há
O ponto
De partir?





Responsabilidade

A responsabilidade é apenas
Sua,
Dizem.
Está na moda dizer.
Já disseram a você?
Já explicaram,
Bem direitinho,
O porquê?
Pela doença, a saúde,
Pela dor,
Pelo sorriso,
Dor de dente e acidente,
Todo ato, todo fato,
Pelo ser, pelo não ser...
Que poder!
Que maravilha
Ser ilha!
Estar a salvo, afinal,
Da ditadura
Hormonal!
Não ser “peixa”,
Como aquela que,
Imaginem:
Virou macho
Só porque tiraram o único macho
Do aquário!
Não ser bichinho gentil
E, só porque vai ser pai,
Virar a casaca:
Entrando em seu território,
Pega e mata!
Ah, ser gente é muito bom!
Estar acima
De qualquer pressão
Da civilização!
Nascer assim, pronto,
Sem precisão
De nenhuma informação.
Será mentira que há
Um tal de DNA?
Nem sei dizer o que sinto!
Nascer sem nenhum instinto!
Ou, pelo menos, nenhum,
Nenhum instinto em comum.
Senão...
(Será que já me confundo?)
A responsabilidade, daí...
Em vez de ser só de um
Seria de todo mundo...


Deixa-me Aprender

As garras do gatinho,
Na pele,
Brincam.
Seus olhos nos meus,
Sentidos estudando
Os limites,
O espaço-tempo
Entre o prazer
E a dor.

Deixa-me aprender com as tuas garras,
Teus olhos,
Teu movimento
Atento
A saber as minhas:
Quando arranham
E quando
Acariciam.



Para as Mães

De que você precisa?
Carinho?
Aconchego?
Colinho?
Carinho rápido,
Ligação direta,
Agora? Já?

Pare,
Antes que o coração
Dispare.
Antes que,
Como usual,
Confunda o fio do telefone
Com o cordão
Umbilical.

Antes
Que o pé
Tropece, se enrosque
Nas malhas
Do tecido
Do desconhecido
E as lágrimas saltem
E entre em erupção
Um vulcão.

Pare
E, em entrega,
Deixe-se acariciar,
Consolar
Pelo Divino
Feminino.
Pode também pedir
As chaves dos portais,
O sol dos caminhos,
A sabedoria dos rituais sagrados
De chegada,
Esses não facilitados
Pela tecnologia.

E esperar.
Esperar que o momento se faça,
Que cheguem as palavras,
A voz,
Seu tom,
Indispensável na travessia,
Corda estirada
Sobre o conhecido
Desconhecido.
Mas agora,
Agora,
Enquanto espera,
Fortalecer-se é preciso,
Sob pena
De processos de transformação
De carência em ressentimentos,
Panos embebidos em óleo,
Espremidos em velhos armários
Esperando
O grau que transbordará.

De que você precisa?
Carinho rápido?
Carinho nutritivo?
Gostoso?
Voz quentinha,
Em que velhas histórias
Não produzem dissonâncias?
Então ligue.
Aquela amiga, sabe?
Aquele amigo,
A moça do mercado,
Aquela que sempre lhe sorri?
Ligações diretas,
Quase seguras.
Sorrisos temperando a voz,
Manhãs de sol,
Alegria,
Presente da tecnologia.



Quando?

Quando
O primeiro espanto
Diante da admiração
Pelo saber?
Quando
A percepção
De que o saber
Poderia, então, ser
Tão eficaz
Instrumento de poder?
Moeda corrente,
Passível de ser
Roubada?
Em que exato momento
A percepção
Da fantástica função
Do erro
E seu impressionante
Seqüestro?
Quando
A apresentação pública
Do grande fantoche,
Fetiche,
Astuto substituto,
Veneno inoculado,
Pecado?

Não se ocupe! Preocupe-se!

É, é isso.
Pare um pouco.
Faça como a vida,
Como o coração,
Tão, tão ocupado,
Mas que sempre dá
Sua paradinha.
Como a canção,
Feita de som e de silêncio.

Sim,
Preocupe-se.
Não se ocupe agora.
Não tente embriagar seus sentidos.
Dê-se o presente
De um momento.
Ouça, com carinho,
Em você,
As vozes da vida,
Vozes antigas
De manter viva
A vida.
Seus anseios.
Seja respeitosa,
Reverente.
Demonstre que merece
Confiança.

Dê-se esse presente,
Poupe energia.
Como montar esse quebra-cabeças,
Sem instruções,
Sem conferir
Se há ali
Todas as peças?
Receba-se
Como a alguém importante,
Que tem coisas a dizer.
Permita-se fluir
Palavras, idéias, sensações, sentimentos
Lágrimas.
Dados.
Seja carinhosa,
Não perca nada.
Então pergunte-se:
O que realmente
Quero?
Que conseqüência pode ter
O meu querer?
Para mim, para as pessoas?
Para o meio ambiente?
Quais são os meus recursos?

Como chegar ao que me falta?
E mais perguntas
Que vierem.

Deposite, então, todos os dados,
Com cuidado,
Na caixinha de jóias.
E ofereça-os com amor
A seu EU superior.


À minha intuição


Amada,
O que nos separa?
O que me fez
Desconfiar de ti?
Alguém teria dito algo?
Quando foi que,
Pela primeira vez,
Eu te olhei como a uma estranha
E te afastei com as mãos
Espalmadas?
E como teriam sido,
Ao longo dos anos,
(Já tantos...)
Tuas estratégias de,
Tomando caminhos tortuosos,
Burlar vigilâncias,
Chegar, de um salto,
Antes que te fechasse a porta
Na cara?
E ainda assim,
Depois de tudo,
Fechar-te o rosto?
O coração?

E agora,
Que te quero,
E te chamo, com lágrimas nos olhos,
Onde estás?
Quem és, entre tantos disfarces?
Terias, também, te perdido,
No baile de máscaras?
Ah, vem, se puderes!
Podes perdoar-me
Por não saber?
Por acreditar que só a razão...
Por ter pensado que ela me daria tudo,
As chaves
Para todos os portais?
Por não sabê-la
Tão menina,
Aprendiz bela,
Atirada ao palco,
Arrancada de sua infância,
Vestida de brilhos de empáfia,
Morta de medo
Em cima das pernas de pau?

Ah, vem, doce amiga!
Quero receber-te no coração,
Na alma,
Oferecer-te uma xícara de chá,

Sentar-me a teu lado...
Minha razão,
Doce menina curiosa,
Quer dar-te denovo a mão
Para que lhe mostres
Os novos velhos caminhos que conheces.



Mães da Terra


Desamadas mães
Da Terra,
Descansemos.
É chegado o momento
Do alívio.
Já podemos ir deixando escorregar
De nossos ombros,
Docemente,
Como fios de água
Escorrendo em seus declives,
Em murmúrios de sol,
Por entre pedras e flores,
O peso secular.

Não é verdade
Esse poder
Que nos fizeram crer
Ter.
Ter sobre os destinos
Dos filhos
Da terra.
Conhecimento absoluto,
Poder absoluto,
Culpa absoluta,
Ali, no meio dos que apontam,
E lavam as mãos.

Tomemos nosso lugar
Tranquilamente,
Movimento novo, novas probabilidades
De conexões
No espaço que nos cabe
No círculo,
Entre todos,
E, respirando, deixemos,
Que nos olhem nos olhos.
Poderemos, então, todos juntos,
Olhar a vida,
As estratégias da vida
Em nós,
Nas mães da natureza,
Nos pais da natureza,
Nos filhos da natureza,
Nas relações entre todos os seres
Da natureza.
Poderemos olhar, enfim, para o grande
Engano
De negarmos em nós
As forças da vida.
E, juntos, repartindo os emaranhados de fios,
Alegremente,


Procurar pontas, desatar nós,
Retomar os caminhos,
Onde um dia nos perdemos,
E seguir adiante.


Quadros

Parece-me engraçado,
Agora,
Ter pensado
Que tinha
A direção.
Assim, como se estivesse na frente
E fosse escolhendo,
Entre idéias,
Objetos disponíveis,
O material
De construir a vida,
Até, um dia,
Dando por terminada a tarefa,
Afastar-me,
Como o artista se afasta do seu quadro,
E admirar
Minha obra.

É engraçado,
Agora.
Vejo a vida
Afastando-se,
Como o artista o afasta de seu quadro
E admirar sua obra
Em mim.

E é interessante,
Isso:
De enfim me ver processo
E mais que isso,
Parte
De um processo amplo...
Criatura ligada a criaturas,
Semelhantes estruturas,
E assim mesmo tão
Indivíduo,
Tão perto do passo novo,
Da mágica pincelada,
Surpresa
De alegrar a vida,
De deixá-la sentir
Que valeu.


Chorar


Dêem-me, então,
Ao menos,
O direito de chorar.
A natureza chora,
Eu sou natureza.
Deixem que se faça em mim
O ciclo das águas.
Sou natureza.
Por que devo apresentar
Razões?
A quem pode servir
Esse engolir
Que envenena?
Que miséria no mundo
Poderia,
A culpa de chorar
Minorar,
Mesmo que num único
Segundo?
Ah, deixem-me chorar,
Como o dia e a noite
Deixam escorrer suas águas,
Livremente,
Em fontes, rios, mar.
Posso dar-lhes motivos, se quiserem:
Meu sofrer,
O sofrer de todas as mulheres,
Todas as mães, esposas, prostitutas,
E essas separações
Que nos queimam.
Ah, e o sofrer do mundo!
Mas pra quê?
Deixem-me chorar apenas.
Quero chorar,
Chorar sem endereço,
Sem intenção,
De desviar qualquer ser
De seu querer.
Quero sentir a beleza,
A paz das sete Divinas cores
No cristal
Da lágrima, o jardim.
Quero fluir
Em água e sal
Para o grande oceano.


Adolescência

Mãe,
O que é esse querer
Ficar?
Esse desejo
De ir?
Esse enrolar-me
Para caber no calor
Do teu colo?
O que são essas asas que se desatam
E puxam meu ser,
Sonhando o longe?
Essa dor
Na barriga?

Esse esconder-se do medo,
Esse virar o mundo,
Essa represa,
De conter a força
Das lágrimas?
Essa culpa
Quando meus olhos
Já não podem
Descansar nos teus?
Esse terror
Por não poder sentir-me
Grato?
E por exigir ainda
O supremo prazer
De que caces para mim
(Mesmo
Mesmo à custa
Da energia de que precisas
Para também ser)
Sempre a última
Presa?
Mas como já partir?
E enquanto não se faz o parto,
Então fingir,
Para nós dois,
Que já parti.
E alargarmos esse abismo,
Só porque pensamos
Que temos as rédeas;
Que somos nós
Vivendo na vida
E não a vida
Vivendo
Em nós


Cozinhando

Na cozinha,
Tenho medo.
Melhor é buscar refúgio
No-que-deu-certo-pra-mamãe-vovó-bisa-tata.
Vai que invento,
E enveneno as pessoas.
Você ri? Tenho em mim a responsabilidade
Das ancestrais,
Que tinham que arriscar-se
Com as plantas desconhecidas
E, quantos desastres...
Melhor ficar no que-se-conhece.

E a desaprovação na cara
Do patriarca,
Seguida por todas as outras caras
Obedientes à força- maior?
Melhor ser tragada pela terra
Do que estragar as come-mor-ações.

Quando vou para a cozinha,
Não vou só,
Como os homens, que podem
-- ou  não --
Descobrir a América,
Pisar a América,
Sugar as tetas da América,
Sorver o mel de seus lábios,
Empertigar-se,
Olhar de frente
E esquecer.

Não vou só para a cozinha.
Tenho à minha roda
Os olhares que esperam,
Que exigem
(porque essa-é-a-nossa-obrigação)
A felicidade. Que não agradecem.
Agradecer?
Da hora de comer.
E ai se não for:

Pratos na parede,
Sarcamos,
Educadas piadas. A sentença, a exclusão.
Olhares, quetais.
Pequenos grandes dramas,
Longo e lento fio,
Contas de lágrimas brilhantes
Com gosto de cebola e alho,
Cravo, canela das índias.

Ah! Que eu encontre a conta,
O ponto de luz na lágrima,
Que leve à terra do encanto,
Onde a cozinha
É só minha.

Olhos

A mulher,
Não olha nos olhos,
Nem se conecta diretamente
Impunemente.
Não olha
E nem sabe disso
(Que não olha)
Porque no fundo
Do inacessível do seu ser,
A ancestral vela.
E, controle remoto,
Inspiração desse,
Tão tosco,
Abreviando os poucos passos
Até o aparelho de TV,
Dita os caminhos secretos do olhar-mulher,
As sutilezas
Dos movimentos do corpo-mulher
A salvo,
Até seu destino,
Sua fatalidade,
Sua esperança de sol,
De dança ao vento,
De água escorrendo no corpo nu,
De entrega ao fogo alquímico,
De reverência à Terra,
De semente
De vida.


A mulher
Não olha o homem
Nos olhos,
Nem se conecta
Em gestual direto
Impunemente.
E nem pode saber disso
Ainda.
Não enquanto não conhecer os caminhos,
Palmo a palmo,
De séculos e séculos,
Abertos a ferro e fogo, de medo feito ódio-força,
Caminhos tortuosos de avanços e recuos,
Meandros
De fome de carinho feita ressentimento,
Enquanto não descortinar
As clareiras protegidas,
Os rituais
Da tomada do prazer,
Do mergulho do prazer,
Da percepção do prazer
Feito arma
De poder.
Caminhos de sobreviver.

E admirar,
Ficar de boca aberta,
Babar
E agradecer e reverenciar,
Até o final dos tempos,
As ancestrais.
Ter a exata noção,
A mais tranqüila
Certeza
De que não seríamos seres da Terra
Sem sua
Que dizer?
Grandeza?
Sensibilidade?
Força?
Inteligência?
Beleza?
Esperteza?
Conhecimento
Da função de guardiã
Do gênero humano?
Ou mais?
Guardiã do caminho
Para o absoluto?

A mulher
Não olha o homem
Nos olhos
Impunemente,
Sem óculos de proteção
Que a mantenha a distância
Segura.
Pra, pouco a pouco,
À medida que, se
Inteira,
Possa ir diminuindo o grau das lentes
E, então, descobrindo que óculos são apenas
Instrumentos de não ver,
Tirá-los.
Deixar
Ser.

Olhos II

O homem
Olha nos olhos
E no resto,
Quando os olhos
E o resto
(Ah, o resto!)
Não têm “dono” :
Pai, marido, irmão,
Amante forte
(Falta de sorte!)

O homem olha direto
( Por quê? Há outras modalidades?)
Escrutina
Devassa
Como quem tem
O direito.
Sim, há o chefe,
Os “Superiores”,
Os “inferiores”,
Ligados intimamente
Por exercícios seculares
Aos músculos dos globos oculares.
Quanto à mulher,
Salvo exceções versos atrás
Colocadas,
E sutis delicadezas,
Que não cabem nas generalidades,
Quanto à mulher,
O direito adquirido.

E não me venham com conversas
Sobre relacionamentos.
Não quero conhecê-los.
Sou guardião dos direitos
Conquistados
(A que preço?)
Por meus ancestrais.
Não se mexe
Em time que está ganhando.
Não trairei minha turma,
“ Menina não entra
No nosso clube” .
Que continue muito claro,
Sob pena de desmoronamentos.

Já votam.
Ousaram ganhar dinheiro
( “ O que é até bom nesta crise... ”)
Pensam que são donas de seu sexo
( O que até não me parece mau...
Epa! Desde que não seja
Mamãe-irmã-esposa-filha-e-agregadas).
E conquistas quetais
(Permeadas de ais!)
Que não quero nem ouvir.
Quem mandou?

Pronto, ótimo,
Chega.
Como acha que posso
Engolir tudo isso
Sem uma secular
Indigestão?
É exigir demais
Da mente e do coração.
E das entranhas!
Devagar com o andor,
Que o santo
É de barro,
E, se quebra,
Como reconstruir
Sua estrutura
Íntima?

Não sei nem como
Isso tudo se fez,
Muito menos, então,
Como fazer
Diferente.
E de onde partir
Para atingir
Um porto seguro.
Tá tudo tão escuro!



Espreguiçar ...

Espreguiçar...
Tem sorriso.
Tem ar novo,
Graça de criança e bicho
E invenção.
É sabedoria inata.
Milenar, milionar, bilionar.
O universo,
Negro,
A luz escondida
Nas partículas apertadinhas
Da matéria,
Espreguiçou...
E mostrou
Seu brilho.
Uma célula
Espreguiça.
A noite, quando vai nascendo,
Espreguiça.
O mar, lambendo a praia,
Espreguiça...
E deixa marcas
Na areia.
Marcos.

Cores e Música

Houve um tempo
Em que queria apenas
Cores suaves,
Música suave,
Tons e sons
Rosa-claros,
Claros azuis, violetas...

Hoje ainda os quero.
E também vermelhos,
Laranja,
Amarelos,
E rock-and-roll.
E Paco de Lucia.

Estar no mundo
Requer todos os ritmos
E todas as cores.

A Casa e o Poeta

Na rua,
Estreita,
As casas
Se admiram.

A pedra,
O tijolo
Não se estranham
Ali, juntos.

E os dias passam
O sol passeia
(Ou raieia?)
Pelas pedras,
Tijolos,
Madeira,
Ferro.
Mistura esquisita
De quem gosta
Ou não tem como
E inventa.

Então, um dia, um poeta.
Como terá sido?
A pedra?
O poeta?
Segredos móveis,
Alma a alma
Do poeta
Da pedra
Almas.

O poeta na casa em frente.
A janela sorri,
O olhar sorri,
O poeta atravessa,
Tão estreita,
De pedras de tropeçar,
A rua.

Então,
A casa é poesia
E o coração do poeta
É essência de pedra.

Então,
São Thomé das Letras,
O que não se explica.
A casa
O poeta
O en-
Levo.



Sattvrincando

A energia da comparação
Desperta um dragão.
Ele, o dragão, pode, apenas,
Sentir rápido
Arrepio.
Pode abrir um olho,
Sentir sutil movimento,
Conjunto atento
De músculos.
Sentir longínquo calor,
Chama que nem assoma
Mas chama.
E vai engendrando
Pirografias.

A energia da comparação
Desperta rajas e tamas*
E eu quero ficar
Sattvrincando...

*Os três guna ou “qualidades naturais”.

Tamas: escuridão
Rajas: fogo
Sattva.: equilibrio